Autores: Marina Amaral.
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Não era para tanto. Desde que a ministra Anielle Franco pegou um avião da FAB de Brasília para São Paulo no domingo passado, uma cobertura intensa – negativa – deu ares de escândalo ao que deveria ser apenas a assinatura de um protocolo de ações entre o governo federal e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pelo combate ao racismo no esporte. No Estadão, jornal mais aguerrido nas denúncias à ministra, foram mais de 20 conteúdos publicados nos quatro últimos dias.
É verdade que a ministra e, principalmente, os posts desbocados de sua jovem assessora ajudaram a atiçar a fogueira, mas Anielle foi sumariamente condenada em colunas, editoriais e reportagens com títulos duvidosos, mesmo depois de ter demitido a funcionária que se excedeu em seu perfil pessoal e pedido desculpas ao presidente do São Paulo.
O desequilíbrio fica evidente quando se compara o tratamento reservado a outros ministros.
As críticas se voltaram contra Anielle, primeiro, por ela ter utilizado um avião da FAB para ir ao evento – exatamente como fez o seu colega do Ministério do Esporte, André Fufuca, sem despertar alvoroço. Viajavam a serviço, uma das situações previstas para o uso das aeronaves da FAB por autoridades; nada que se compare a levar a família para passear, como vimos tantas vezes no governo Bolsonaro. Mas, enquanto a viagem de Fufuca passou em brancas nuvens, o lide da primeira matéria sobre o tema, publicada na manhã de segunda-feira no Estadão, cravava: “A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, viajou de Brasília a São Paulo em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e acompanhou a final da Copa do Brasil entre São Paulo e Flamengo no Morumbi neste domingo, 24. Anielle é flamenguista” (negrito meu).
Como se tivesse sido esse o motivo para Anielle comparecer ao ato com a presença de três ministros e do presidente da CBF, o que só aparece – e da seguinte maneira – no segundo parágrafo: “De acordo com a ministra, em vídeo divulgado nas redes sociais, ela foi ao estádio para assinar uma ação do governo federal que tem por objetivo combater o racismo no esporte”.
Ora, o evento – oficial e público – foi anunciado nos sites do governo e no da CBF; não faz sentido atribuir essa informação à ministra, como se fosse uma declaração, e não um fato, soando como pretexto. Ela pegou o avião da FAB para torcer pelo Flamengo foi o resumo da ópera, como captaram as redes sociais, utilizando-se também de uma brincadeira que fez a ministra, exatamente com o fato de ser torcedora do time carioca.
Quando Anielle tentou se defender, dizendo que não compreendia por que estava sendo questionada por pegar o avião da FAB a serviço, foi tachada de arrogante. Ao dizer que havia deixado as filhas para trabalhar no domingo, um problema real para todas as mães que já tiveram que fazer plantão, acirrou a fúria do “pauliste” O Estado de S. Paulo, como mostra este trecho do editorial de quarta-feira passada: “A sra. Anielle Franco ainda teve a audácia de recorrer à maternidade, um ponto sagrado para a sociedade brasileira, para justificar seu erro. ‘Precisei abrir mão de estar com a minha família e minhas duas filhas em um domingo para ir trabalhar. Quem tem filhas pequenas consegue entender o peso disso’, escreveu a ministra, como se fosse a mãe mais atarefada do País naquele domingo”.
Àquela altura, a assessora, que chamou a torcida do São Paulo de “branca, que não canta, descendente de europeu safade, tudo de pauliste” em um post, já havia sido demitida e Anielle tinha telefonado para o presidente do clube paulista para pedir desculpas pelas bobagens postadas pela funcionária. Mas nem a exoneração da assessora nem o reconhecimento do erro por ela cometido acalmaram a “sensibilidade branca”.
Na quinta-feira, uma reportagem no Estadão com título exagerado voltou a dar munição às redes vorazes por polarização. Um de seus expoentes, o deputado Kim Kataguiri, chegou a pedir a convocação da ministra à Comissão de Fiscalização do Congresso para explicar os “gastos de viagem” de sua pasta. Com o título: “Ministério da Igualdade Racial, de Anielle Franco, gastou metade da verba de 2023 com viagens”, a reportagem mostrava que a pasta empenhou R$ 6,1 milhões da verba de uso livre do ministério em viagens; que tem um total de R$ 12,5 milhões empenhado neste ano. E fazia questão de citar o nome da ministra, como recomendam as práticas de SEO, para rodar mais na internet.
Coloquei em negrito a que verba o jornal se refere porque o orçamento total do ministério para este ano é de R$ 109 milhões, informação que aparece no fim da reportagem. Quantos prestaram atenção?
Também não há na reportagem comparação com a verba gasta por outros ministérios em relação ao orçamento – segundo o repórter Renato Souza, do Correio Braziliense, o Ministério da Igualdade Racial é o que menos gastou neste e nos governos anteriores. De acordo com dados do Portal da Transparência, o Ministério da Defesa gastou, por exemplo, R$ 100 milhões e o das Comunicações, R$ 11 milhões.
Certo, o orçamento da pasta que tem a missão de combater o racismo é um dos menores da Esplanada, mas não há como saber se houve despesas proporcionalmente excessivas sem analisar caso por caso. O que sabemos é que Anielle é uma das quatro mulheres não brancas entre 37 ministros (as outras são Marina Silva, Sônia Guajajara e Margareth Menezes), é irmã de Marielle Franco, um dos símbolos do movimento negro contemporâneo, e talvez mais transparente do que seria seguro no país da hipocrisia machista e racista.
Mais do que o suficiente para que a imprensa seja mais cuidadosa com títulos e adjetivos que alimentam congressistas de extrema direita e odiosos memes e ofensas – estes sim, perigosos – contra as irmãs Franco e o movimento negro nas redes sociais. O racismo está ali, estampado, nos comentários dos posts que trazem as notícias dos jornais.
Fonte: Via apublica.org