SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “É um direito. É como um reconhecimento da escravidão praticada contra o nosso povo”, afirma Oswaldo dos Santos, 54, ao definir a importância da titulação do quilombo Porto Velho, na região do vale do Ribeira, em São Paulo, onde nasceu e vive até hoje.
Já faz mais de vinte anos que a comunidade dele luta pelo título, documento que oficializaria a propriedade do território ocupado. Ainda assim, parece distante de conquistá-lo.
Santos, um dos líderes da associação do quilombo, diz que a busca pelo título é, acima de tudo, uma tentativa de interromper as invasões nas áreas da comunidade, o que, segundo ele, é constante e põe em risco a vida dos moradores.
“[O título] É para garantir às famílias a permanência da cultura da comunidade”, acrescenta. “É para que a gente não receba mais tanta ameaça [de expulsão e de violência].”
Embora tenha suas próprias especificidades, a situação fundiária do Porto Velho é semelhante a de vários outros quilombos brasileiros.
Direito assegurado pelo artigo 68 da Constituição, a regularização de terras quilombolas caminha, muitas vezes, a passos lentos -e em alguns casos, nem sequer sai do lugar. Não à toa, somente 5% das mais de 6.000 comunidades existentes no país são tituladas.
Dividido em várias etapas, o processo de regularização fundiária se inicia com a autoidentificação de uma comunidade. Depois, é submetido às fases de certificação, delimitação, demarcação e, em alguns casos, desapropriação de terrenos.
Quem emite a certificação das comunidades é a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Já as demais etapas são de responsabilidade do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ou dos institutos de terras estaduais e municipais.
Os três primeiros quilombos titulados no Brasil foram os de Boa Vista, Água Fria e Pacoval do Alenquer -todos no Pará-, em 1995. De lá para cá, o país emitiu 322 títulos no total. Juntos, correspondem a menos de 1% do território nacional.
“Vários processos de titulação levam dez, 15, 20 anos. Não dá para olhar toda essa morosidade sem falar em racismo institucional. O reconhecimento desses territórios sempre fica em segundo plano”, diz Milene Maia, coordenadora de programas do ISA (Instituto Socioambiental), entidade conhecida por pesquisas e ações de defesa de povos quilombolas, caiçaras, indígenas e ribeirinhos.
Além do racismo institucional, Maia atribui a demora da regularização fundiária a interesses políticos e agrários sobre esses territórios. Para ela, o sistema de titulação precisa urgentemente ser revisto e modificado.
Só no Incra existem hoje 1.802 processos abertos sobre a regularização de territórios quilombolas à espera de uma conclusão.
Questionado sobre o tempo levado na titulação, o Incra afirma que “o andamento dos processos também envolve a atuação de outros entes, cada um com seu próprio rito e tempo de tramitação processual”.
O órgão diz ainda que é prejudicado por “restrições orçamentárias” e garante que medidas estão sendo tomadas pelos gestores atuais para “reverter esse quadro”, mas não entra em detalhes sobre possíveis mudanças.
Segundo Milene Maia, do ISA, a maioria dos “processos empacados” paralisa durante a elaboração do chamado RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) que reúne informações históricas, antropológicas, cartográficas, ecológicas e fundiárias da comunidade.
É geralmente nessa fase que, ainda na visão dela, interesses externos aos do quilombo entram em ação para dificultar o processo -por meio de articulações com membros dos órgãos responsáveis pela avaliação do documento.
O quilombo Porto Velho é um caso repleto de entraves. A comunidade foi reconhecida oficialmente em 2003 pelo Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) e certificada em 2006 pela Fundação Cultural Palmares. Sete anos depois, teve seu RTID concluído, mas só viu o documento ser publicado em 2016. Ainda hoje aguarda a finalização dos trâmites burocráticos.
Localizada entre as cidades de Itaóca e Iporanga, a área que a comunidade reivindica tem cerca de 960 hectares e passou a ser ocupada pelos antepassados dos atuais moradores no século 18, quando negros escravizados foram transportados à força para uma fazenda da região.
Conhecida pela produção de mel e de farinha de mandioca, a comunidade tem hoje 27 famílias e integra uma rede de cultivo sustentável do vale do Ribeira.
Advogada de povos e comunidades tradicionais, Patricia de Menezes Cardoso explica que a titulação de terras quilombolas se dá em nome da associação de cada comunidade, “na modalidade de propriedade coletiva”.
Segundo ela, que é membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-SP, a regularização fundiária é uma medida de reparação histórica com os povos escravizados no país. Isso explicaria o por que a legislação proíbe que terrenos titulados sejam divididos, fracionados ou vendidos -condição que dificulta a especulação imobiliária nessas áreas.
Título nenhum, porém, é sinônimo de paz. Ou pelo menos é assim que Rafaela Santos, advogada da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras e moradora de Porto Velho, avalia a situação.
Ela afirma que pouco adianta titular áreas se outras políticas forem ignoradas. Como exemplo, cita a desapropriação de terrenos -medida de despejo e indenização dada às pessoas que não pertencem ao quilombo, mas ocupam seu território.
“Não basta emitir um papel. É fundamental pensar na resolução dos conflitos”, diz. “É importante fazer a desapropriação e oferecer canais de denúncia [de violação dos direitos quilombolas].”
A advogada diz ainda que a tensão nos quilombos se intensificou nos últimos anos, com o governo Bolsonaro. Na sua avaliação, o aumento dos conflitos teria acontecido tanto em nível federal quanto estadual e municipal.
Apesar de se mostrar empolgada com a chegada de Lula (PT) ao poder, Rafaela Santos diz ter “fortes dúvidas” sobre a postura do novo governo em relação às reivindicações quilombolas. “Até agora, não sinto que seja, de fato, uma prioridade.”
Autor(es): MARINA LOURENÇO E TAYGUARA RIBEIRO / FOLHAPRESS