Frequentar o centro de São Paulo é visto como ‘ato de resistência’ contra abandono

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dentro, é um luxo só: os tapetes vermelhos, a imponente escadaria central, as colunas e o teto ornamentados e os acabamentos dourados. De arquitetura eclética, inspirada na Ópera de Paris, o Theatro Municipal de São Paulo divide a praça Ramos de Azevedo, a cujo escritório pertence o seu projeto, com o prédio do antigo Mappin, famosa loja de departamentos que, até a década de 1950, mantinha um elegante salão de chá frequentado pela elite paulistana.

O teatro, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, continua preservado, mas cercado de ruína e abandono. A praça reduziu-se a uma filial da cracolândia, vez ou outra transformada em banheiro a céu aberto..

Quem tenha ido a uma ópera italiana -ou apenas ao café do teatro para saborear uns quitutes- fica impressionado com o contraste. A imagem é uma espécie de metáfora daquilo que deparamos praticamente em quase todas as esquinas do centro da capital paulista. Alguma coisa nada agradável acontece por ali diante de uma indiferença quase generalizada.

Há, porém, um grupo, que, ao abarcar moradores, comerciantes e turistas, faz de sua presença na região, onde a cidade nasceu, cresceu e floresceu, um gesto de resistência em defesa do centro da maior e mais rica cidade da América do Sul.

“É muito lindo, apesar de todos os problemas que o cercam. O teatro é imponente”, descreve Waylland Vinícius Pinheiro, 29, de Itaquera, em sua primeira incursão no espaço, quando foi degustar um brunch no Café do Municipal acompanhado da irmã, a pedagoga Williane Priscila, 28. “Aqui há lugares incríveis, que, tristemente, muita gente não conhece”, afirma ela.

O atual estado do centro é considerado por visitantes, moradores e gente que trabalha ali como o pior há tempos. Mesmo assim, não é suficiente para desanimar ou afastar quem reconhece o valor e a riqueza de uma região que concentra diversos espaços culturais e uma das arquiteturas urbanas mais impressionantes do Brasil.

Não há como negligenciar, contudo, que o lugar é hoje a área que concentra o maior contingente de pessoas em situação de rua do país. Números oficiais registravam, em 2021, 31.844 indivíduos sem teto em São Paulo.

A dispersão da cracolândia por toda a área conhecida como centro expandido agravou esse quadro de degradação e ampliou a sensação de insegurança.

“Sem dúvida, é um dos fatores, juntamente com a vulnerabilidade social e o ‘pós-pandemia’, com seu impacto econômico refletindo em lojas fechadas e menos gente circulando pelas ruas”, explica Matheus Santiago, 36, gerente de comunicação do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), que mora e trabalha no centro.

Após um abril calamitoso, responsável, ainda segundo ele, por uma redução de público da ordem de 50% devido ao quadro de violência, o reforço de policiamento fez que o patamar de visitantes voltasse aos 100% neste mês. “Num sábado, recebemos 2.000 pessoas.”

No centro, além de CCBB, estão a Caixa Cultural São Paulo e o Farol Santander, espaços culturais ligados a instituições financeiras. Também estão o Pateo do Collegio, o Mosteiro de São Bento, a Sé, o Solar da Marquesa, todos de interesse histórico, urbanístico e turístico. O primeiro arranha-céu da América Latina, o Edifício Martinelli, projeto de 1929 do italiano Giuseppe Martinelli, é outro ícone da região. Graças à iniciativa privada, o prédio vai ganhar restaurante, café e observatório.

“Mesmo diante de um cenário adverso, temos iniciativas demonstrando que as pessoas podem acreditar no centro”, completa Santiago. A propósito, o CCBB acaba de inaugurar um anexo de 300 m² num prédio em frente à sede.

Frequentadores dos espaços culturais queixam-se, ademais, da falta de zeladoria por parte do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Por sua vez, a prefeitura esclarece, em nota, que “a atual gestão prioriza, de forma inédita, a requalificação da região central, com iniciativas desenvolvidas em diferentes escalas de intervenção urbana”.

Artista plástico, autor de uma série de grafites em prédios da metrópole, Ciro Schunemann, 42 anos, 25 deles vivendo no centro, afirma que, apesar de a prefeitura ter a sua sede no viaduto do Chá, no coração histórico, é inacreditável o desmazelo.

“O poder público não quer nem tem interesses em investir aqui”, diz. “Se quisessem, poderiam, por exemplo, começar com uma ação para reverter o problema crítico de falta de moradia. O centro concentra o maior número de prédios abandonados da cidade.”

Cabe aos moradores, na opinião dele, fazer um esforço para preservar a região. “Estamos numa batalha para evitar que se degrade o ambiente ainda mais. Nossas intervenções representam uma tentativa de fazer aquilo que a prefeitura não faz: zelar, cuidar, deixar o lugar bonito e agradável.”

A reclamação sobre a falta de segurança é unânime entre quem mora, circula, trabalha e visita.

Na famosa esquina da Ipiranga com a São João, o gerente do Bar Brahma, Alex Martins, 36, é categórico: “Se a gente, enquanto comércio, baixar as portas, acaba o centro. Nós não vamos desistir”. A clientela que procura o bar, formada por cerca de 70% de turistas, precisa, por óbvio, se sentir segura. No último mês, o clássico endereço aumentou em 200% o número de seguranças, computa Martins.

“Falta ação de agentes públicos. O crime por aqui é muito organizado. Todo o mundo sabe onde vai parar celular furtado ou roubado. É uma omissão horrorosa do Estado”, diz. “Como uma questão cultural, o centro é mais importante que o bar. Não vamos desistir dessa região, num gesto persistente de resistência.”

Vivem hoje na região central cerca de 430 mil pessoas, segundo dados do IBGE de 2010, em bairros que vão da Sé à Bela Vista, passando por Cambuci, Liberdade e Santa Cecília.

Acostumada a tocar em baladas, a DJ Dina Cardoso, 47, diz que “quem é da noite é gato escaldado”. “Faço parte de um grupo que é resistência por natureza.” A sociedade paulistana, de acordo com ela, encontrou o culpado para canalizar todos os problemas que estão por trás desse cenário de violência: o dependente químico. “Não sei quem está por trás das gangues de bike, mas suponho que não sejam moradores da cracolândia, que, provavelmente, nem bicicletas têm”, afirma. “A polícia deveria saber, mas não toma providências.”

Nas palavras do major da PM Rodrigo Vilardi, assessor da Secretaria de Estado da Segurança Pública, “o governo definiu como prioridade o apoio à prefeitura nas políticas e ações realizadas na região central”. Segundo ele, especialmente no que diz respeito às áreas abertas, “para devolver qualidade de vida e segurança a todas as pessoas que ali vivem, trabalham ou, de algum modo, frequentam aquele espaço”.

“Tanto a Militar quanto a Civil, reforçaram ações, operações e efetivo na região”, diz. De acordo com o major, são cerca de 200 policiais a mais atuando diariamente. Tais esforços resultaram, ainda na versão do oficial, no aumento de 50% no número de prisões na zona central.

É inegável que a movimentação de helicópteros, as explosões, o frenesi em massa de dependentes, tudo isso gera desconforto e reforça a sensação de insegurança, avalia a paisagista Thereza Verde, 69. “Falta governança.” Na opinião dela, a arquitetura histórica é a mais bela do Brasil. “Não tem igual. A gente precisa de alguma forma ajudar a preservar esse legado cultural.”

A historiadora Liliana Navarro, 62, endossa a opinião da amiga. Sempre que vai a algum lugar, redobra a atenção. Nem por isso deixa de ir. “Quem costuma frequentar a região sabe que existe certa banalização da pobreza e da violência. Precisamos estar presentes.” Mais que isso: “É uma manifestação política estar aqui. Nós precisamos do centro”.

Autor(es): ROBERTO DE OLIVEIRA / FOLHAPRESS

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