Impunidade é padrão em assassinatos de defensores da Amazônia

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – O roteiro de assassinatos de defensores de direitos humanos e do meio ambiente na Amazônia é praticamente o mesmo há 40 anos: em locais com vulnerabilidade econômica, crimes brutais são cometidos contra quem interfere nas relações sociais e, após as mortes, vem a impunidade.

O caso do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari há um ano, apresenta semelhança com outros crimes de grande repercussão nas últimas décadas na região, destacam especialistas ouvidos pela reportagem.

Bruno e Dom foram mortos a tiros, esquartejados e queimados em 5 de junho do 2022, por pescadores acusados de invasão à terra indígena. Um ano depois, os assassinos mudaram a versão e alegam ter matado para se defender do indigenista, que os perseguia e os ameaçava.

A defesa sustenta que indígenas e pescadores viviam em paz até Bruno intervir. Diz ainda que a primeira versão dos acusados foi extraída mediante tortura das polícias Militar e Federal no Amazonas. O histórico de Bruno e de conflitos no Vale do Javari contrapõem a versão contra ele.

Dos assassinatos de grande repercussão nas últimas quatro décadas, apenas o do seringueiro Chico Mendes, em 1988, e o da missionária católica Dorothy Stang, em 2005, resultaram em punição de toda cadeia do crime: desde os mandantes até os executores.

Ainda assim, amigos e familiares de Chico Mendes e da irmã Dorothy acreditam que outros nomes envolvidos no assassinato escaparam da Justiça.

Nos dois casos, houve pressão internacional durante a investigação e o julgamento. Ambos atuavam na defesa de trabalhadores rurais e da floresta, respectivamente, em Xapuri, no Acre, e Anapu, no Pará.

O procurador federal Felício Pontes, auxiliar da acusação no julgamento do assassinato de Dorothy Stang, afirma que há um padrão nos crimes de mando —e o objetivo é convencer o júri a ver o assassinato como algo sem premeditação, onde, na verdade, há pistolagem. Para ele, essas alegações são feitas para proteger os mandantes.

“É para dizer que o status quo é o legítimo, que as coisas estão boas do jeito que estão e quem se atreve a mudar acaba morrendo. É muito usado nos conflitos na Amazônia”, diz ele, que tem 20 anos de experiência jurídica na região.

O cenário é confirmado em relatório da ONG Global Witness de 2022 sobre violência rural. Nele, o Brasil aparece como o país mais letal para defensores do meio ambiente e de terras.

De 2012 a 2021, foram 342 assassinatos, mais de 85% deles na Amazônia. Cerca de um terço dos mortos eram indígenas ou afrodescendentes. O estudo também observa que poucos casos ganham a atenção da mídia.

Em 1982, o advogado do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Marabá (PA), Gabriel Pimenta, foi assassinado com três tiros nas costas. No ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela impunidade aos mandantes e assassinos. A sentença diz que o país tem graves falhas no sistema de Justiça.

Também em Marabá, o advogado e ex-deputado estadual Paulo Fonteles (PCdoB) foi executado com três tiros na cabeça em 11 de junho de 1987. Com atenção da mídia nacional, o caso foi a julgamento, e o organizador e executores do crime foram condenados. Os mandantes escaparam.

Em 8 de dezembro de 1988, outro defensor de trabalhadores rurais em conflitos com fazendeiros, o deputado estadual João Batista (PSB) foi assassinado, em Belém.

Ele havia saído de uma sessão da Assembleia Legislativa do Estado do Pará e foi morto, em frente a esposa e filhos, na entrada do prédio em que morava. Os mandantes ficaram impunes. O crime ocorreu 14 dias antes do assassinato de Chico Mendes, no Acre.

“Desde ali, o poder político e econômico dizia que foram mortos por se meterem numa área perigosa: defender trabalhadores rurais que sofriam até trabalho escravo. As lideranças socioambientais assassinadas na Amazônia, de um modo geral, ousaram denunciar as injustiças do modelo econômico”, avalia o procurador.

O seringueiro Chico Mendes denunciou, dentro e fora do país, a devastação no Acre, a pressão sobre os trabalhadores rurais e as ameaças de morte que recebia. Foi morto com um tiro de escopeta no quintal de sua casa.

Antes, em junho de 1988, foi assassinado o seringueiro e braço direito de Chico Mendes, Ivair Higino. Na mesma região, em Brasileia (AC), em junho de 1980, o líder seringueiro Wilson Pinheiro levou tiros nas costas durante reunião do sindicato de trabalhadores rurais da cidade e não resistiu.

LEGÍTIMA DEFESA COMO ESTRATÉGIA

O promotor do Ministério Público do Pará Edson Cardoso de Souza afirma que um dos obstáculos para vencer a impunidade é convencer o júri. O promotor atua há 20 anos na área criminal e foi o responsável pela acusação dos condenados no assassinato da missionária Dorothy.

Cardoso afirma que, em casos com indícios claros de autoria, a defesa assume o homicídio. Para ele, reconhecer o que não se pode negar vira barganha de credibilidade com o júri e funciona na proteção dos mandantes.

“O mandante é uma coisa mais abstrata. E convencer o júri é a parte mais angustiante para evitar a impunidade. Por mais que o júri concorde que estão mortos e [que aqueles] são os autores, pode ocorrer uma absolvição. A defesa vai dizer: ‘Esse pessoal não é da região, não aceitava que derrubasse uma árvore, que pescasse um peixe'”, diz Cardoso.

A estratégia da legítima defesa foi usada no caso Dorothy e não deu certo. “A defesa tenta usar o que tem às mãos. Mas, no caso da irmã Dorothy, os mandantes, o intermediário e os executores foram condenados. Uma das frases que usavam é que era muito perigoso entrar naqueles assuntos, que ela era culpada da sua própria morte”, recorda Felício Pontes.

O promotor Cardoso afirma que a alegação de legítima defesa exige o mínimo de provas. No Vale do Javari, ressalta, há um segundo crime que é ocultação de cadáver, comum em homicídios dolosos e premeditados.

O desparecimento da arma de Bruno é outro ponto negativo para a defesa. “A embarcação dele foi perfurada pelas balas do Bruno? E a arma do Bruno? Se eles enterraram o corpo, tiveram acesso à arma”, questiona.

Para Pontes, além da punição de mandantes e executores, esses crimes exigem presença efetiva do Estado em zonas mapeadas com conflitos.

“A morte do Dom e do Bruno seria evitável se a Funai e o sistema de Justiça estivessem funcionando”, opina.

O procurador avalia também que, numa região com riquezas naturais e ausência do Estado, prevalece a “lei do mais forte”, e o valor da vida e da morte ganha outros contornos.

O assassinato de Dorothy Stang custou R$ 50 aos mandantes.

No caso de Bruno e Dom, no depoimento à Justiça, o pescador Amarildo Oliveira, que confessou ter matado, esquartejado e queimado o indigenista e o jornalista, ao ser questionado sobre a ocultação dos cadáveres, respondeu: “Eu não ia deixar um ser humano para os urubus comer. Jamais ia deixar um urubu comer um ser humano. Para mim, aquilo não era certo”.

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RELEMBRE CRIMES CONTRA DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS E MEIO AMBIENTE NA AMAZÔNIA

21 de junho de 1980, Brasileia, Acre

Wilson Pinheiro, 47, era presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia e da Comissão Municipal do PT. O trabalho dele é considerado o embrião da Aliança dos Povos da Floresta, criada por Chico Mendes.

Foi assassinado pelas costas, quando se reunia com trabalhadores na sede do sindicato. O crime ficou impune.

O então líder sindical e hoje presidente Lula e Chico Mendes foram processados com base na Lei de Segurança Nacional por incitação aos trabalhadores ao participarem de protestos sobre o assassinato de Pinheiro.

No ano passado, o MPF pediu a condenação do estado do Acre e da União por omissão na apuração do caso.

18 de julho de 1982, Marabá, Pará

Gabriel Pimenta, 27, era advogado do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Marabá. Foi assassinado com três tiros pelas costas ao sair de um bar dias depois de ganhar uma ação que contrariava fazendeiros.

O crime completou 41 anos sem qualquer condenação.

Em outubro do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos classificou o Brasil como um país de “graves falências” no sistema de Justiça pela falta de punição aos mandantes e assassinos do advogado.

11 de junho de 1987, Marabá, Pará

O advogado e ex-deputado estadual Paulo Fonteles (PCdoB), 38, foi assassinado com três tiros na cabeça à luz do dia num posto de gasolina.

Ameaçado de morte, tentou uma cadeira em Brasília e ficou sem mandato. Foi morto na sequência. Organizador e executores do crime foram presos. Os mandantes escaparam.

18 de junho de 1988, Brasileia, Acre

O sindicalista Ivair Higino era considerado “braço forte” de Chico Mendes e lutou com ele pelos direitos dos trabalhadores e defesa da floresta.

Foi assassinado quase na porta de casa, quando saiu para pegar leite para o filho de cerca de um mês. O caso segue impune.

8 de dezembro de 1988, Belém, Pará

O advogado e deputado estadual João Batista, 36, atuava na defesa dos direitos humanos e dos trabalhadores rurais.

Após três tentativas de assassinato, foi morto com tiros à queima-roupa em frente à esposa e aos filhos na entrada do edifício onde morava. Ele havia saído de uma sessão na Assembleia Legislativa. Os mandantes ficaram impunes.

22 de dezembro de 1988, Xapuri, Acre

O seringueiro, sindicalista e ambientalista Chico Mendes, 44, foi morto a tiros de espingarda no peito, enquanto tomava banho no quintal de sua casa.

Chico denunciou fora do país as agressões à floresta e aos seringueiros. Chegou a ser condecorado na ONU e a participar como único brasileiro de reuniões internacionais em defesa do meio ambiente.

Ameaçado de morte, contava com escolta policial. O assassinato dele teve cobrança internacional por justiça, o que levou, em dois anos, à condenação do executor e mandante.

12 de fevereiro de 2005, Anapu, Pará

A missionária católica Dorothy Stang, 73, foi morta com seis tiros ao custo de R$ 50 aos mandantes em uma estrada de terra.

Atuava desde 1970 na Amazônia e, desde 1997, na organização política de assentamentos para reforma agrária e conservação da floresta. Mandante e executor foram presos e condenados.

6 de setembro de 2019, Tabatinga, Amazonas

O colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado por volta das 18h em uma das avenidas mais movimentadas de Tabatinga, na fronteira com Peru e Colômbia, poucas horas depois de deixar Atalaia do Norte (AM), onde ficava a base da Funai que ele trabalhava.

A base havia sido atacada ao menos quatro vezes desde o ano anterior. Maxciel atuava na fiscalização de pesca ilegal no Vale do Javari.

Ele foi atingido por dois tiros na nuca quando andava de moto com sua esposa. Os assassinos, que se aproximaram dele em outra moto, não foram identificados e o caso segue impune.

5 de junho de 2022, Atalaia do Norte, Amazonas

O indigenista Bruno Pereira, 41, e o jornalista Dom Phillips, 58, foram mortos a tiros de espingarda, esquartejados, queimados, e enterrados duas vezes numa área de igapó, como forma de ocultar seus cadáveres.

Foram encontrados graças às denúncias e buscas de indígenas da região. Bruno era um dos mais importantes indigenistas da sua geração e especialista em indígenas isolados.

Perseguido na Funai, passou a atuar como contratado da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) no treinamento de indígenas para monitorar invasões ao território.

Dom Phillips, que escrevia um livro sobre a Amazônia, o acompanhava na viagem para coletar conteúdo. A atuação de Bruno incomodava a gestão anterior da Funai e as pessoas que atuavam na pesca ilegal na região.

Autor(es): ROSIENE CARVALHO / FOLHAPRESS

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