RIBEIRÃO PRETO, SP (FOLHAPRESS) – “Não consigo beber cerveja. Perdi totalmente a vontade. Nem desce. E olha que eu amo cerveja”, escreve uma paciente em tratamento com Ozempic em um dos muitos grupos nas redes sociais sobre o tema. “Eu era chocólatra e agora não consigo mais comer chocolate. Minha vida é chupar laranja”, afirma outra usuária do remédio.
Criado para o tratamento de diabetes tipo 2 e utilizado de forma off label para o emagrecimento, o Ozempic tem como princípio ativo a semaglutida, substância que imita o hormônio GLP-1, produzido pelo sistema gastrointestinal, e tem como uma de suas funções avisar ao cérebro que o corpo está saciado.
A substância, porém, tem gerado efeitos colaterais que intrigam médicos, usuários e cientistas, como redução de vícios e compulsões para muito além da comida.
Embora nem todos encarem essas reações, relatos de pacientes que pararam de fumar, consumir bebidas alcoólicas e até de roer unhas e cutucar a pele são comuns. A maioria dos comportamentos têm relação com a ansiedade e estresse. A ciência não sabe ainda porque isso acontece ou como controlar esse efeito, mas estudos indicam que o hormônio sintético pode estar atuando no sistema de recompensas do corpo em relação às substâncias que causam dependência.
Segundo o médico psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), os primeiros testes já apontavam à possibilidade de que fármacos atuantes nos receptores GLP-1 poderiam modular comportamentos impulsivos. Com os relatos que têm chegado aos consultórios, a hipótese vem ganhando força.
“Os estudos pré-clínicos em ratos e em humanos atualmente apontam para a mesma direção, de um efeito direto dos agonistas de GLP-1 no sistema de recompensa, muito provavelmente pela diminuição da liberação de dopamina após o consumo de substâncias com potencial de causar dependência”, afirma Damiano.
Essa reação, de acordo com o psiquiatra, é ainda mais curiosa porque ocorre independentemente de IMC (índice de massa corporal), níveis de glicose ou outros marcadores de saciedade. Damiano pontua que a dopamina não é o único neurotransmissor relacionado à dependência, mas é considerado o mais importante por causar a sensação de bem-estar.
Essa circulação dopaminérgica acontece principalmente em uma parte do cérebro chamada de mesolímbica, localizada bem no centro da cabeça. “O consumo de drogas, bem como todos os comportamentos que geram prazer (e em alguns casos alívio, que é cerebralmente confundido com o prazer), têm potencial de abuso por hiperativar essa área”, diz o pesquisador.
“O cérebro tende a querer recuperar esse estado de falso equilíbrio que a substância ou comportamento causam. No caso da endocrinologia, é importante salientarmos que um dos comportamentos que nos geram mais prazer e podem desequilibrar essa área é o ato de comer, principalmente com alimentos que hiperativam a circuitaria acima, como açúcar”, diz o médico.
A endocrinologista Carolina Rocha Betônico, membro da Sbem (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) e do Departamento de Doença Renal do Diabetes da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), observa clinicamente que a semaglutida afeta principalmente o consumo de álcool.
“Muitos pacientes relatam que o hábito de consumo de bebida alcoólica se tornou menos frequente e relatam não conseguir ingerir a mesma quantidade que consumiam antes, porque ficam saciados mais rapidamente”, afirma a médica.
Doutora em Ciências da Saúde pela USP e professora da Faculdade de Medicina de Assis, Betônico diz que além de controlar os níveis de glicose no sangue, os medicamentos que agem aumentando a concentração do GLP-1 no corpo retardam o esvaziamento do estômago.
“Eles atuam no sistema nervoso central em receptores que estão envolvidos no controle do apetite. Consequentemente, os pacientes têm menos fome e controle da compulsão alimentar. Só que recentemente esses medicamentos têm recebido atenção como um potencial tratamento para alguns vícios”, aponta a endocrinologista.
Para a docente, a busca científica deve ser pela confirmação de que a redução na ingestão de bebidas alcoólicas, relatada em estudos feitos com animais, especialmente roedores, também se reflete em humanos.
“A sensação de saciedade que o medicamento provoca, atrasando esvaziamento do estômago, associada à situação no cérebro, pode ser a chave para explicar a potencial redução do consumo, especialmente do álcool”, indica.
Betônico reforça que esses medicamentos ainda não têm aprovação para tratamento de tabagismo, alcoolismo ou abuso de drogas.
“Os agonistas de GLP-1 têm uma ação na regulação de neurotransmissores como dopamina e gaba, que agem diminuindo o comer compulsivo e, possivelmente, em parte, a impulsividade de outros compartimentos, como o uso de álcool e drogas. Esses mecanismos, porém, ainda precisam ser melhor estudados”, avalia.
Autor(es): DANIELLE CASTRO / FOLHAPRESS