SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dias após a morte do pai, há três anos, a comerciante Vera Agueda, 69, recebeu as primeiras visitas de corretores interessados na casa da família. O imóvel fica quase no topo da colina onde está o Mirante de Santana.
O nome é familiar aos paulistanos atentos aos boletins do clima. É no modesto observatório no alto do morro na zona norte da capital que desde 1945 funciona a estação meteorológica de referência para a cidade.
Perto da estação do metrô Jardim São Paulo – Ayrton Senna, a vizinhança do mirante com altitude de 792 metros do nível do mar, acima da média de 785 metros do município, desperta o interesse de construtoras. A melhor vista da cidade já apareceu como atrativo em propagandas de prédios de alto padrão a serem construídos por perto, segundo relatos e panfletos apresentados por moradores.
Os empreendimentos nunca vingaram porque uma lei municipal de 1971 impede que sejam erguidos no entorno edifícios mais altos do que o segundo pavimento do mirante. Isso seria o bastante para interferir nas medições e observações realizadas pelo Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia). Barreira legal que deixará de existir caso a Câmara aprove e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) sancione um artigo da revisão do Plano Diretor que libera os espigões nos arredores.
A brecha inserida pelo relator do projeto, vereador Rodrigo Goulart (PSD), já passou em primeira votação e tem a sua segunda e definitiva deliberação prevista para a semana que vem.
Agueda recusou as ofertas. Ela não pensa em deixar o bairro onde nasceu e viveu histórias como a do dia em que desceu a ladeira no carrinho de rolimã numa corrida contra o menino que mais tarde seria tricampeão da Fórmula 1. Senna morou na esquina do mirante e, por isso, teve o metrô do bairro nomeado em sua homenagem. “Não foi uma corrida justa, ele foi de kart”, recorda.
No mesmo quarteirão, antigos vizinhos venderam suas casas. Os imóveis foram demolidos. No local, a construtora FAO Building chegou a anunciar o prédio residencial Piazza San Giorgio, com 23 andares. A mobilização de moradores impediu a obra de avançar. A empresa cercou o terreno.
“O poder financeiro quer esmagar nossas memórias”, diz Agueda.
Debates sobre os efeitos negativos da verticalização em áreas residenciais frente à necessidade de prover moradia permeiam a discussão sobre o crescimento da cidade. No caso do Mirante de Santana, porém, o impacto às aferições meteorológicas pode levar prejuízos para além dos limites do bairro e da cidade, afirma o meteorologista do Inmet Franco Nadal Villela.
Grandes estruturas de concreto retêm quantidades relevantes de calor e isso influencia o microclima do entorno. Também alteram a direção e velocidade do vento. Fatores que podem tornar as medições de temperatura e umidade do ar inúteis para a comparação com a série de dados registrados no local há quase 80 anos, segundo Villela.
Diante da emergência climática e as consequentes catástrofes que o aquecimento global pode trazer para a população urbana, “este é o pior momento para perder parâmetros históricos”, afirma o meteorologista.
Devido à sua precisão e rigor em relação às normas internacionais, a estação do Inmet faz parte da rede da agência meteorológica mundial da Organização das Nações Unidas. Na cidade há apenas mais uma estação com essa credencial, a do Instituto Astronômico de Geofísica da USP, no parque do Estado (zona sul).
Além de raras, as duas estações com padrão internacional em São Paulo têm características distintas devido às suas localizações, explica Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora sobre microclimas urbanos.
Enquanto a estação da zona norte está inserida na malha urbana e é referência para a cidade, a outra, no sul, é influenciada pela proximidade da serra do mar, pela brisa marítima e pela vegetação do entorno.
“Não podemos prescindir da estação e da manutenção das condições no seu entorno”, diz Duarte, reforçando que o monitoramento climático é fundamental para o planejamento urbano.
Na semana passada, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo realizou reunião com moradores do entorno do mirante e técnicos do Inmet. À Folha de S.Paulo, a promotoria informou ter solicitado ao Conpresp (Conselho Municipal de Preservação) a análise urgente sobre o tombamento da área.
Na reunião, segundo a promotoria, o secretário municipal de Urbanismo e Licenciamento,
Marcos Gadelho, tomou conhecimento sobre os prejuízos a serem provocados pelo artigo inserido no Plano Diretor e se prontificou a informar o prefeito, que poderá vetar esse dispositivo.
À reportagem, a prefeitura informou que o assunto está no âmbito do Legislativo e, neste momento, não vai comentar o tema.
A Abrainc, associação que representa incorporadores imobiliários do país, afirmou não ter apresentado pedidos requisitando a revogação da lei que restringe a altura de edifícios no entorno do mirante.
A FAO Building e o Secovi-SP, sindicato patronal de construtores considerado o principal representante do mercado imobiliário em São Paulo, não responderam.
Autor(es): CLAYTON CASTELANI / FOLHAPRESS