SANTO AMARO DA IMPERATRIZ, SC (FOLHAPRESS) – “Ouvir que não existe quilombola em Santa Catarina me causa indignação, mas não espanto”, diz Terezinha Silva de Souza, 87, fundadora da associação do quilombo Caldas do Cubatão, da cidade catarinense Santo Amaro da Imperatriz.
Ao lado do Rio Grande do Sul, o estado lidera a lista dos mais brancos do país, com 78% de sua população autodeclarada branca, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em seguida, com 64%, está o Paraná, completando a tríade sulista.
“O negro sempre foi excluído, ficou em segundo plano, teve sua história apagada”, afirma Terezinha, ao dizer que não se surpreende com quem desconhece as veias quilombolas que pulsam ao sul do mapa brasileiro.
Apesar de ter ao menos 319 comunidades remanescentes de quilombos, a região é raramente vista como um território de resistência negra.
No imaginário coletivo, a figura do gaúcho, por exemplo, é com frequência associada a de uma pessoa branca que veste bombacha e anda a cavalo. Nada de pretos, ou pardos. Que dirá, então, quilombolas. É o que diz Fernanda Oliveira, historiadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ela afirma que a exclusão dos negros desse imaginário surge, em parte, devido à branquitude dos estados e, principalmente, à maneira com a qual a identidade regional da área foi erguida.
“A partir dos anos 1840, existe uma imigração alemã e italiana muito acentuada no Sul. O auge disso acontece entre o fim do século 19 e começo do 20, com políticas de incentivo à imigração”, diz Oliveira.
“Vai se gestando, então, um ideário para pensar na diferença desta parte do Brasil em relação às outras.” E, aos olhos da elite intelectual da época, afirma a professora, tanto a população imigrante quanto a atuação do regime escravocrata local se distanciavam do restante do país.
Não que o Sul abdicasse da escravidão. Pelo contrário. As charqueadas, por exemplo, eram um pilar relevante no mercado interno e contavam com mão de obra escravizada. É fora de lá, porém, que o regime ganha destaque no país.
“O Nordeste que a gente conhece hoje era o lugar brasileiro que mais tinha escravizado, por causa da indústria açucareira. Daí se cria a ideia de que a escravidão do Sul não contribuía economicamente de forma massiva como a de lá”, diz Oliveira.
Segundo a professora, isso teria feito a historiografia do período distorcer a realidade, a partir da ideia de que o sistema escravocrata sulista teria tido baixo impacto social e havia sido brando com seus escravizados.
É só a partir do fim dos anos de 1980 que estudos passam a olhar para o tema com profundidade, investigando a relação entre o sul brasileiro e a escravidão.
Ainda que a tentativa de minimizar os horrores do regime escravocrata tenha deixado marcas na atualidade, o passado, claro, é imutável.
Neta de Ignácio Antonio da Silva, Terezinha conta que seu avô foi escravizado na construção do hoje chamado Hotel Caldas da Imperatriz, em Santo Amaro da Imperatriz. Famoso, o espaço hospedou, em 1845, o casal dom Pedro 2º e Teresa Cristina, fato que deu origem ao nome da cidade e à lenda de que princesa Isabel, assinante da lei Áurea, teria sido ali concebida -a monarca nasceu cerca de nove meses após a estadia de seus pais no hotel.
“A gente não tinha nada. Veio a libertação e todo mundo continuou escravo. Os negros continuaram trabalhando para os brancos. Não tinha o que fazer”, afirma Terezinha. “Hoje, percebo que, desde criança, estive em trabalho escravo. Ganhava muito pouco pelo trabalho que fazia, às vezes em troca de comida e roupa usada.”
Com familiares na cidade e municípios vizinhos, a quilombola rebate a ideia de uma Santa Catarina embranquecida. “A memória deste estado tem mãos negras e sangue do povo escravizado.”
Ana Maria Santos da Cruz, 73, diz que, além de invisibilidade, os quilombolas sulistas sofrem com um racismo específico, que estaria ligado à colonização da área e à sua alta taxa de população branca.
“Onde moro tem cinco ‘colônias’ alemãs: Socorro, Cachoeira, Vitória, Jordãozinho e Samambaia. Nossas crianças sofreram para estudar. Exigiam que aprendessem o [idioma] alemão”, afirma ela, que é da comunidade paranaense Invernada Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu.
“Neguinhos sem terra. Era assim que chamavam o nosso povo”, continua. “Hoje a maioria [da juventude] tem diploma universitário. São psicólogos, advogados, tudo. Se formaram para voltar ao território e mostrar que preto é capaz.”
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 mostra que dois dos estados sulistas estão entre os cinco do país com mais registros de discriminação racial. O Rio Grande do Sul lidera os casos de racismo, e Santa Catarina fica em segundo lugar no crime de injúria racial, com 32,8 -números por 100 mil habitantes.
“Todo negro vivencia o racismo no Brasil. Mas no Sul é diferente”, diz Luciane Pereira, da Coordenação Estadual das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Santa Catarina. “Não somos a maioria. Não nos vemos nos espaços. É muito difícil romper a naturalização do racismo na população.”
Coordenadora do comitê Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia, Raquel Mombelli afirma que a hegemonia branca do Sul resulta numa ausência de políticas voltadas às comunidades da região.
Segundo ela, o apagamento desses territórios faz as instituições locais ignorarem a urgência das demandas quilombolas. É como uma bola de neve. Tratados como invisíveis, os sulistas reivindicam questões como titulação de terras -direito garantido pela Constituição-, mas não são vistos como prioridade, afirma Mombelli.
Quando saem do Sul, quilombolas dizem causar espanto por suas origens. Sandro Gonçalves de Lemos, 48, liderança do quilombo urbano Lemos, da capital gaúcha, conta que é comum viajar e ouvir expressões como “nossa, preto no Sul?”.
“A própria mídia daqui não mostra os pretos. Enquanto puderem esconder que tem bastante negro na cidade, vão fazer. É uma tática de branqueamento”, afirma ele.
As comunidades gaúchas não são poucas. O Rio Grande do Sul é o sétimo estado com mais quilombos do Brasil. Além disso, a região mobilizou importantes conquistas negras.
O nascimento do 20 de Novembro enquanto data da Consciência Negra, por exemplo, vem do Grupo Palmares, de Porto Alegre. A data contesta a celebração do 13 de Maio, que faz referência à lei Áurea, assinada sem aplicar nenhuma política de equidade ou de assistência aos negros.
Fernanda Oliveira, a historiadora, afirma que o Sul foi a zona brasileira onde mais germinaram clubes negros no século 19. Com exaltação a culturas negras, os espaços reuniam escravizados e ex-escravizados, que, juntos, desfrutavam de uma atmosfera livre.
“Toda essa população precisou interpor possibilidades de resistência num território que ainda hoje insiste em negar a sua presença.”
Autor(es): MARINA LOURENÇO / FOLHAPRESS