BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A tributação de recursos mantidos por brasileiros em paraísos fiscais busca colocar em pé de igualdade os contribuintes que detêm investimentos no Brasil e recolhem tributos sobre seus rendimentos e aqueles que usam empresas ou fundos offshore (fora do país) para fugir indefinidamente do pagamento de impostos, diz à Folha de S.Paulo a subsecretária de Tributação da Receita Federal, Cláudia Pimentel.
Segundo ela, a situação atual de desigualdade de tratamento entre esses dois grupos fere o princípio da capacidade contributiva, uma vez que a isenção beneficia justamente quem tem condições de manter seu patrimônio no exterior -geralmente, pessoas de alta renda.
“É uma medida importante para evitar o diferimento dessa tributação, que pode ser até eterna e nunca acontecer, se você efetivamente não repatriar [o recurso], e que gera uma falta de isonomia com quem tem esse investimento aqui no Brasil”, afirma.
A medida também busca aplicar a essas pessoas físicas o mesmo tipo de tratamento tributário já conferido às empresas no Brasil, que precisam recolher tributos caso obtenham rendimentos no exterior.
A cobrança de impostos sobre os recursos offshore de pessoas físicas foi lançada pelo governo Lula (PT) em uma MP (medida provisória) no dia 30 de abril, como medida de compensação à correção da tabela do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física).
A medida prevê que os lucros obtidos com recursos mantidos em paraísos fiscais serão tributados em até 22,5% sobre os ganhos, uma vez por ano, independentemente de o indivíduo resgatar ou não esses investimentos e trazê-los ao Brasil. O percentual equivale à alíquota máxima já cobrada sobre ganhos com aplicações financeiras de curto prazo dentro do país.
Os paraísos fiscais são aqueles com baixa (inferior a 20%) ou nenhuma tributação sobre a renda, ou que dão pouca transparência a informações de empresas lá sediadas. A lista inclui 61 países ou territórios, entre os quais estão Bermudas, Ilhas Virgens Britânicas e Ilhas Cayman.
A cobrança do imposto também vai valer para pessoas físicas que detêm offshores situadas em países fora dessa lista, caso a empresa controlada obtenha mais de 20% de seus ganhos totais a partir da chamada “renda passiva”, que inclui juros, royalties, participações e aplicações financeiras, entre outros. Isso seria um indício de que sua maior fonte de receitas não é a exploração de uma atividade econômica.
Segundo a Receita, esse segundo critério foi incluído porque a lista de paraísos fiscais não cobre todas as localidades com baixa tributação ou regimes fiscais favorecidos para expatriados de alta renda, que são o alvo da medida.
A subsecretária ressalta que a medida já é adotada por outros países e segue recomendações de organismos como a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Regras similares já são usadas em países como Alemanha, Áustria, Austrália, Bélgica, Chile, Colômbia, Estados Unidos, França, Holanda, México, Portugal e Reino Unido.
“A medida está alinhada com as práticas internacionais e com decisões do Judiciário”, afirma.
A MP tem efeito imediato de lei, mas a tributação dos rendimentos obtidos com esses ativos só vale a partir de 2024, devido à anterioridade exigida por lei. Por isso, na prática, a medida só será aplicada se ganhar aval do Congresso em até quatro meses, prazo de tramitação de uma MP. O Legislativo já barrou tentativa anterior de iniciativa semelhante.
Na exposição de motivos, o governo indicou que a medida tem potencial para arrecadar R$ 3,25 bilhões neste ano, R$ 3,59 bilhões em 2024 e R$ 6,75 bilhões em 2025. Mas o valor pode ser maior, embora a Receita seja cautelosa diante das dificuldades em auferir os números com precisão.
O chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias, explica que as estimativas apresentadas pelo governo foram calculadas com base em apenas parte dos ganhos esperados.
Além de cobrar impostos sobre os rendimentos futuros, a MP permite aos contribuintes interessados atualizar os valores de seus bens e direitos no exterior para cifras de mercado, recolhendo uma alíquota menor (10%) sobre o ganho de capital auferido desde a aquisição do patrimônio até 31 de dezembro de 2022 (estendido a 2023 no caso de participação societária em empresa offshore).
Segundo Malaquias, a estimativa de arrecadação reflete principalmente essa expectativa de atualização, uma vez que é possível usar alguns parâmetros conhecidos como referência para obter o resultado da tributação desse estoque.
Números do Banco Central, por exemplo, indicam que brasileiros mantinham, como pessoa física, US$ 244 bilhões (ou quase R$ 1,2 trilhão) em recursos no exterior ao fim de 2021. O estoque em dólar é 19,7% maior do que o declarado ao fim de 2020.
Nem tudo isso está depositado em paraísos fiscais, nem será necessariamente regularizado, pois isso depende de uma opção do contribuinte –que estará sujeito a sanções penais em caso de omissão na declaração e evasão de divisas. Ainda assim, é possível usar dados agregados para chegar a alguma estimativa.
A Receita ainda não calculou, porém, quanto pode obter com a tributação dos rendimentos futuros desses ativos mantidos fora do país.
“A gente consegue avaliar o ganho cambial, para isso tem o parâmetro da SPE [Secretaria de Política Econômica], que projeta o câmbio para os anos seguintes. Agora, quanto uma empresa vai ter de lucro lá fora? Não consigo [prever], é difícil. E às vezes tem a participação desdobrada, o sócio aqui participa de uma empresa, mas o lucro dela está vindo de uma outra participação que a gente não consegue enxergar”, explica Malaquias.
A subsecretária, por sua vez, ressalta que o patrimônio já existente lá fora, superior a R$ 1 trilhão, não é parâmetro suficiente para conseguir fechar a conta.
“Tem que considerar quantas pessoas vão optar por regularizar, e depois tem que projetar qual parcela disso efetivamente vai ser o rendimento dos fluxos futuros, porque, aí sim, a partir de 2024, obrigatoriamente você vai tributar o rendimento. Então não é tão fácil”, diz Pimentel.
Apesar dessas dificuldades para quantificar o potencial de arrecadação, a subsecretária afirma que a Receita terá condições de fiscalizar o cumprimento da legislação tributária.
“Temos informações e troca de informações, recebemos inclusive de paraísos fiscais. Tem o que chama hoje aqui no Brasil de e-financeira, em que os bancos têm que fornecer informações de estrangeiros que têm conta nos bancos aqui, e nós também recebemos informações de contas que brasileiros têm [no exterior]. E com essa medida, claro que a Receita Federal vai exigir também uma informação direta do contribuinte”, afirma ela.
Segundo Pimentel, não informar a existência do capital no exterior seria um crime. “Aí você já tem a questão de penalidade, de você ter evasão de divisas. Então é uma questão séria. Não me parece que esse tipo de medida vá é induzir a isso, pois seria um crime”, alerta.
A tributação de recursos brasileiros em paraísos fiscais já foi proposta pela Receita Federal durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), mas não prosperou nas negociações entre Executivo e Congresso.
Cobranças sobre paraísos fiscais eram previstas em um projeto de lei formulado pela Receita e enviado pelo então ministro Paulo Guedes (Economia) ao Congresso com o objetivo de modificar as regras do Imposto de Renda, mas o trecho acabou sendo eliminado após tratativas com o relator da proposta na época, deputado Celso Sabino (União Brasil-PA).
Guedes chegou a defender a retirada do trecho. “Ah, ‘porque tem que pegar as offshore’ e não sei quê. Começou a complicar? Ou tira ou simplifica. Tira. Estamos seguindo essa regra”, afirmou em um debate realizado por empresários em julho de 2021.
Posteriormente, reportagens publicadas por veículos como a revista Piauí e o jornal El País revelaram que Guedes, sua esposa e sua filha eram acionistas de uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal. O então ministro negou irregularidades, embora críticos tenham apontado potencial conflito de interesses.
Autor(es): FÁBIO PUPO E IDIANA TOMAZELLI / FOLHAPRESS